Falsa Promessa ou Verdadeiro Remédio para a Falta de Habitação?
(Uma síntese de reflexões inspiradas num artigo de opinião publicado no Jornal Público, 14/01/2025)
A recente discussão sobre a conversão de terrenos rústicos em urbanos como forma de responder à escassez de habitação acessível tem gerado controvérsia, suscitando questões que vão além do simples aumento de solo edificável. De acordo com a reflexão apresentada num artigo de opinião do Jornal Público de 14/01/2025 – Converter Terrenos Rústicos em Urbanos: Solução para a Crise Habitacional ou Falso Remédio? – e cuja leitura aconselho, esta medida pode, à primeira vista, prometer mais oferta e, potencialmente, preços de habitação mais baixos. Porém, esconde riscos de especulação, arbitrariedade na aprovação municipal e expansão urbana desordenada. A análise que se segue baseia-se nessas inquietações, cruzando-as com contributos de diversos autores, incluindo o economista Anthony Downs (2004), e outra literatura especializada em planeamento urbano e políticas de habitação.
1. A Premissa: Expandir as Áreas Urbanas para Resolver a Crise
A lógica subjacente à conversão de terrenos rústicos (agrícolas ou sem qualquer edificação) em zonas urbanizáveis assenta num raciocínio linear:
- Mais solo disponível → Maior oferta de construção → Descida de preços e mitigação da escassez habitacional.
No entanto, este argumento simplifica — e em muitos casos ignora — factores cruciais:
- Localização e qualidade dos terrenos: Podem existir áreas longe dos centros urbanos e sem infraestruturas (estradas, transportes públicos, água, saneamento). Para serem habitáveis, exigem grandes investimentos públicos e privados, que podem, a prazo, anular as vantagens iniciais.
- Planeamento urbano: A expansão indiscriminada do solo urbano pode conduzir a cidades dispersas (urban sprawl), contrárias aos princípios de sustentabilidade, e sobrecarregar os municípios em termos de serviços e logística (transportes, saneamento, recolha de lixo, etc.).
- Mercado habitacional: O preço de um imóvel não depende unicamente da disponibilidade de solo. Fatores como rendimentos médios, taxas de juro, custos de construção, especulação imobiliária e capacidade de endividamento continuam a exercer um peso substancial na formação do preço final.
Esta visão inicial, embora sedutora, requer uma análise mais sofisticada, que não se limite à mera introdução de terreno “novo” no sistema.
2. Arbitrariedade na Aprovação Municipal
Um dos riscos identificados nesta discussão é a eventual arbitrariedade que pode pautar a reclassificação de solo. Muitas autarquias detêm poder quase discricionário para decidir o que é rústico e o que é urbano, estando sujeitas a:
- Falta de critérios uniformes: A inexistência de normas objetivas e equitativas pode deixar decisões ao sabor de pressões económicas, políticas ou até eleitorais.
- Dependência de receitas municipais: A conversão de terrenos em urbanos, seguida da emissão de licenças de construção, gera receitas via IMT, IMI, taxas de edificação, entre outras. Este potencial encaixe financeiro pode condicionar autarquias a aprovar projetos sem uma visão de longo prazo.
- Especulação e desigualdade: Determinados proprietários e promotores podem ver os seus terrenos valorizados quase instantaneamente quando passam a ser considerados urbanos, enquanto outros ficam de fora, criando distorções e suspeitas de favorecimento.
Para além de minar a confiança no poder local, a aprovação arbitrária de reclassificações tende a produzir um ordenamento territorial pouco coerente, com loteamentos isolados ou mal servidos, cujo custo de infraestruturas acabará por recair sobre a comunidade.
3. O “Mérito” de uma Medida: Obter Resultados, Minimizar Impactos
- Objetivo: Aumentar a oferta de habitação e baixar preços é, sem dúvida, um fim almejável. Porém, a mera conversão de terrenos rústicos não assegura automaticamente que as casas terão valores acessíveis ou que se construirá nos locais adequados à procura efetiva.
- Impactos negativos:
- Expansão dispersa e pressão sobre infraestruturas, podendo resultar em custos públicos elevados.
- Risco de desrespeitar zonas agrícolas essenciais ou áreas ambientalmente sensíveis.
- Arbitrariedade nas aprovações, favorecendo especulação e corrupção.
- Alternativas:
- Reabilitação de património degradado: Canalizar incentivos para recuperar edifícios devolutos ou subaproveitados em zonas centrais, onde já existem infraestruturas instaladas.
- Habitação pública e rendas acessíveis: Políticas de arrendamento apoiado, parcerias público-privadas transparentes e quotas de habitação social em novos empreendimentos.
- Planeamento urbano inclusivo: Processos participativos, estudos de mobilidade e impacto ambiental, garantindo coerência territorial e serviços de qualidade.
4. O Contexto Legis¬lativo, a Questão do Custo e o Debate Internacional
4.1. Mais Terreno, Menor Preço?
Em Portugal, o Decreto-Lei n.º 117/2024 simplificou a conversão de terrenos rústicos em urbanos. A justificativa oficial era libertar mais solo para construção, pressionando os valores imobiliários em baixa. Porém, vários urbanistas salientam que já existem terrenos urbanos em abundância, não estando a ser aproveitados por diversas razões (por exemplo, falta de financiamento, promotores à espera de melhores condições de mercado ou burocracias locais).
Além disto, no segmento de preço médio e baixo, o custo do solo representa apenas uma parcela do custo total do imóvel (estima-se cerca de 20%). Se o preço do terreno descer 20% ou 30%, o impacto final na habitação seria de apenas 4% a 6%. E isto presumindo que essa vantagem seria repercutida no comprador, o que nem sempre ocorre em mercados marcados por pouca concorrência e procura especulativa.
4.2. A Visão de Anthony Downs e Outros Especialistas
No livro Growth Management and Housing Affordability: Do They Conflict? (Downs, 2004), vários estudos mostram que a falta ou o excesso de solo urbanizável não é, por si só, determinante para a diminuição ou subida dos preços das casas. Importam, sim, um planeamento urbano eficiente, densificação sustentável, controlo do crédito à habitação, existência de parque habitacional público e políticas contra a especulação.
- Harvey (2012) e Hall (2014) reforçam a necessidade de intervir em zonas centrais, reabilitando edifícios devolutos e fomentando políticas públicas que combatam a especulação.
- Bengtsson (2013) sublinha que parques habitacionais públicos e regimes de arrendamento social produzem maior efeito na redução de preços do que a liberalização do solo.
- Bruegmann (2005) alerta para os efeitos negativos do urban sprawl, como dependência do automóvel, segregação espacial e custos superiores de infraestruturas.
- UN-Habitat (2020) reclama um planeamento urbano inclusivo, com participação das comunidades locais e preservação das zonas agrícolas e ambientais, evitando disrupções desnecessárias.
Convergindo com estes autores, muitas entidades internacionais (OCDE, BCE) defendem ainda políticas macroprudenciais que limitem o endividamento excessivo das famílias (por exemplo, regras de LTV — loan-to-value — ou DSTI — debt-service-to-income), medidas que podem surtir mais efeito no controlo dos preços do que simplesmente converter solo rústico em urbano.
5. Efeitos Colaterais Negativos e Riscos de Curto Prazo
Um dos alertas transversais nesta discussão prende-se com as consequências imediatas e futuras da expansão desordenada:
- Descaracterização de áreas agrícolas: Terrenos férteis ou ecologicamente relevantes podem ser sacrificados para construção, colocando em causa a sustentabilidade alimentar e a conservação de ecossistemas.
- Aumento da dispersão urbana: Novas urbanizações longe das zonas consolidadas estimulam a dependência do carro particular, elevam custos de transportes, geram mais emissões e pressionam as autarquias a estender redes de infraestruturas.
- Incerteza sobre a real necessidade: Por vezes, existe solo urbano já licenciado (“macro-lotes”) que permanece inutilizado. A subutilização ocorre por motivos como a especulação do valor do terreno ou a espera estratégica por condições de mercado mais favoráveis.
Assim, antes de qualquer medida que alargue o perímetro urbano, importa avaliar por que razão uma porção considerável de solo urbano existente não está a ser efectivamente promovida ou ocupada.
6. Caminhos Alternativos para a Acessibilidade Habitacional
6.1. Reabilitação Urbana e Densificação Planeada
Incentivar a recuperação de edifícios devolutos ou subocupados em centros já servidos por transportes e equipamentos cria oferta habitacional onde realmente existe procura. A densificação controlada, respeitando a qualidade de vida, pode ser uma resposta equilibrada à escassez de habitação sem necessidade de “consumir” mais solo rural.
6.2. Habitação Pública e Arrendamento Acessível
A criação ou ampliação de um parque habitacional público, assim como a imposição de quotas de habitação a preços acessíveis em novos projectos privados (inclusão forçada), ataca mais diretamente o problema dos preços elevados. Noutros países europeus, nomeadamente Áustria e Países Baixos, estas estratégias resultaram em oferta a preços controlados e menor pressão especulativa.
6.3. Transparência e Critérios Objectivos na Conversão
Sempre que seja realmente necessária a conversão de algum terreno rústico em urbano, há que definir padrões claros:
- Estudos de Impacto Ambiental e de viabilidade de infraestruturas,
- Processos participativos que envolvam a população,
- Requisitos de construção de habitação acessível e serviços de proximidade,
- Supervisão central ou regional para garantir coerência e evitar arbitrariedades locais.
6.4. Políticas de Crédito Responsáveis
Limitar o endividamento excessivo e prevenir bolhas imobiliárias pode ter maior influência na estabilização ou redução dos preços do que o aumento do solo edificável. Uma expansão desregrada num contexto de crédito abundante e pouco regulado pode apenas inflacionar ainda mais o mercado.
7. Conclusão
A conversão de terrenos rústicos em urbanos frequentemente surge como uma solução fácil para o problema de escassez habitacional. No entanto, os riscos associados — especulação, expansão urbana desordenada, arbitrariedade na aprovação municipal, custos acrescidos de infraestruturas — podem conduzir a um efeito contrário ao desejado. Como realça a análise inspirada na publicação do Jornal Público e sustentada pela literatura internacional, a simples disponibilidade de solo não garante preços mais baixos nem um acesso efetivo à habitação.
Uma estratégia equilibrada implica articular políticas de reabilitação e densificação sustentável, fomentar a habitação pública e regulada a custos suportáveis, assegurar processos de decisão transparentes e promover regras macroprudenciais no crédito à habitação. Sem uma visão global, continuaremos a assistir a concentrações urbanas desequilibradas, desperdício de recursos públicos e valores de imobiliário desenquadrados do poder de compra da maioria das famílias.
Assim, o verdadeiro “mérito” de qualquer medida passa por confirmar se atinge o propósito de tornar a habitação mais acessível, enquanto salvaguarda o interesse coletivo, a sustentabilidade do território e a coesão social. Caso contrário, corremos o risco de adoptar um remédio que, em vez de curar, pode agravar ainda mais o problema.
Referências:
- Downs, A. (Ed.) (2004). Growth Management and Housing Affordability: Do They Conflict? Washington, DC: Brookings Institution Press.
- Bruegmann, R. (2005). Sprawl: A Compact History. Chicago: University of Chicago Press.
- Bengtsson, B. (2013). Paths to Housing Equality: A Comparative Analysis of Rental Systems in Europe. Housing Studies Journal, 28(4), 609–625.
- Harvey, D. (2012). Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution. London: Verso.
- Hall, P. (2014). Cities of Tomorrow: An Intellectual History of Urban Planning and Design in the Twentieth Century. Oxford: Blackwell.
- Logan, J., & Molotch, H. (1987). Urban Fortunes: The Political Economy of Place. Berkeley: University of California Press.
- Feagin, J. (2019). Rethinking Urban Development. Urban Affairs Quarterly, 55(1), 23–40.
- UN-Habitat (2020). The New Urban Agenda Illustrated. Nairobi: United Nations Human Settlements Programme.