Impacto da Desvalorização no Sistema Bancário

1. Introdução

Nos artigos anteriores desta série, abordámos temas como a Crise Subprime (Artigo 1), a Recuperação e Dependência do Crédito Hipotecário (Artigo 3) e, mais recentemente, a Habitação Pública e o Impacto nos Preços (Artigo 5). Vimos como a escassez de oferta pode impulsionar o valor dos imóveis e analisámos como o aumento da oferta de habitação acessível poderia, a médio prazo, moderar a subida de preços.

Este sétimo artigo aprofunda o impacto que uma desvalorização significativa dos imóveis pode ter nos balanços bancários, clarificando as dinâmicas que ligam o setor imobiliário ao sistema financeiro. Para os profissionais do setor (promotores, consultores, avaliadores, etc.), compreender esta interdependência é essencial, dado que a solidez das instituições bancárias e a forma como concedem crédito afetam diretamente a viabilidade de projetos e a valorização dos ativos.

Importante: Em alguns países europeus, o crédito hipotecário pode chegar a representar 25% a 35% dos ativos bancários totais (relatórios da EBA). Em Portugal, segundo dados do Banco de Portugal e do ESRB, o crédito à habitação constitui mais de metade do total de empréstimos concedidos a particulares e cerca de 40% dos empréstimos bancários a clientes (particulares + empresas de construção e promoção). Isto demonstra o peso estrutural do imobiliário nos balanços bancários e a vulnerabilidade do sistema a choques de preço.

2. Crédito Hipotecário nos Balanços Bancários: Panorama Europeu e Português

Em primeiro lugar, vale a pena perceber o grau de relevância do crédito hipotecário na Europa e, de seguida, olhar para o cenário específico de Portugal, onde as taxas variáveis ainda são dominantes.

2.1. Perspetiva europeia

  • Elevada Exposição: Em vários Estados-Membros, o rácio de crédito hipotecário em relação ao total de empréstimos a particulares ultrapassa os 70% (dados da EBA, Risk Dashboard 2023).
  • Advertências do ESRB: O European Systemic Risk Board emitiu alertas sobre potenciais sobrevalorizações no mercado residencial em países como Suécia, Luxemburgo, Dinamarca e Países Baixos, enfatizando a necessidade de medidas macroprudenciais para evitar desequilíbrios.

2.2. Realidade portuguesa

  • Predomínio das Taxas Variáveis: Em Portugal, mais de 70% dos créditos à habitação estão indexados a Euribor (3, 6 ou 12 meses), elevando a sensibilidade das famílias a oscilações das taxas de juro.
  • Rácio de Crédito Hipotecário/GDP: De acordo com o BdP, em 2022, o rácio de crédito hipotecário em relação ao PIB rondava 45%, valor acima da média pré-crise de 2008.
  • Impacto no Setor Imobiliário: A promoção imobiliária e a reabilitação urbana dependem fortemente do crédito bancário. Um abrandamento ou correção de preços pode gerar atrasos em novos projetos e afetar a liquidez das empresas de construção.

3. Dinâmica de Desvalorização e Transmissão de Risco para o Setor Imobiliário

A descida generalizada dos preços tem um impacto enorme na economia. A sua propagação ao sistema financeiro e, em particular, ao setor imobiliário influenciará o valor dos ativos detidos tanto por entidades, como particulares. É fundamental perceber o papel do colateral (ou garantia hipotecária) e de que forma a falta de liquidez pode afetar tanto as famílias como as empresas promotoras.

3.1. Mecanismos de Contágio

  1. Queda dos Valores de Colateral
  • Se o mercado residencial corrige em baixa — por excesso de oferta, retração de procura ou crise económica —, o colateral hipotecário nos balanços bancários perde valor.
  • Para as empresas de promoção e construção, isto dificulta a renovação de empréstimos e a obtenção de financiamento adicional, travando projetos em curso.
  1. Incumprimento de Famílias e Empresas
  • Taxas Variáveis: Uma subida acentuada das Euribor, aliada a uma possível desvalorização do imóvel, pode levar ao incumprimento, sobretudo das famílias com maior esforço de rendimento (DSTI elevado).
  • Impacto na Promoção: Se os projetos terminados não encontram compradores ao preço inicialmente previsto, as empresas podem falhar pagamentos aos bancos, que ficam com imóveis em balanço a um valor inferior ao da dívida.
  1. Deterioração dos Balanços Bancários
  • Diminuição nos rácios de capital (CET1) devido ao aumento de provisões para crédito malparado.
  • Menor disponibilidade para conceder crédito a novos projetos, agravando o abrandamento do setor imobiliário.

3.2. Relação com Oferta de Habitação Acessível

No Artigo 5, projetou-se um aumento de habitação acessível (pública ou subsidiada) que poderia conter a escalada dos preços nos centros urbanos. Para o setor bancário:

  • Efeito Potencial: A maior oferta, sobretudo em segmentos de rendas controladas, pode reduzir a pressão especulativa e atenuar subidas abruptas de preços, mas também pode ampliar a correção caso surja um excesso de oferta ou se o investimento estrangeiro recuar.
  • Risco e Oportunidade: Se a oferta acessível for moderada e planeada, diminui o risco de bolha. Se, porém, houver desequilíbrio ou políticas disruptivas, a correção poderá ser mais rápida e profunda, impactando negativamente o valor do colateral hipotecário.

4. Negative Equity: Risco Central para Bancos e Promotores

Importa perceber o conceito de negative equity — quando o valor de mercado do imóvel é inferior à dívida — e as consequências para quem tem crédito, para os promotores que financiam projetos e para a estabilidade das instituições bancárias.

4.1. Conceito e Magnitude

O negative equity surge quando o valor de mercado do imóvel (colateral) fica abaixo do capital em dívida. Em Portugal, o Banco de Portugal e a EBA sublinham que uma queda de 10 a 20% nos preços do imobiliário poderia colocar uma fração não negligenciável de famílias e promotores em risco de negative equity.

  • Para as famílias: Dificuldade em vender ou refinanciar. O desincentivo a continuar a pagar é menor do que em países com hipotecas non-recourse, mas ainda assim pode levar a incumprimento se as prestações subirem.
  • Para o setor imobiliário: Quem construiu ou reabilitou com elevadas taxas de alavancagem pode enfrentar problemas no reembolso dos créditos, sobretudo se o valor de venda (ou arrendamento futuro) ficar aquém das projeções iniciais.

4.2. Impacto nos Balanços Bancários

  1. Constituição de Provisões: Queda do valor de mercado obriga as instituições a reforçar as perdas esperadas (IFRS 9), pressionando os resultados e consumindo capital.
  2. Ativos Imobiliários em Balanço: A execução de imóveis pode levar a um volume excessivo de real estate nos balanços, vendendo-os, muitas vezes, com desconto, amplificando a quebra de preços.

5. Cenários de Stress: Subida de Taxas e Mudança de Ciclo

Em termos empíricos podemos extrapolar como choques macroeconómicos — como a subida das taxas de juro, a retração do investimento estrangeiro ou o aumento súbito de habitação acessível — podem desencadear uma correção mais ou menos intensa no mercado, repercutindo-se no crédito hipotecário e na saúde financeira dos bancos.

5.1. Subida Rápida das Taxas de Juro

Uma aceleração do aperto monetário pelo BCE, em resposta a níveis de inflação persistentes, pode:

  • Prestação Mensal Mais Alta: Famílias com créditos indexados à Euribor enfrentam custos mais pesados;
  • Menor Procura: O crédito torna-se caro, limitando a capacidade de aquisição de quem depende de financiamento.

5.2. Retração do Investimento Externo

Portugal atraiu, nos últimos anos, um volume considerável de investimento estrangeiro (AL, Golden Visa, buy-to-let, etc.). Se ocorrer um declínio rápido desses fluxos — por questões geopolíticas, fiscais ou monetárias — zona prime podem registar depreciações abruptas, propiciando um efeito dominó no restante mercado.

5.3. Aumento Rápido de Habitação Acessível

Caso o Estado ou parcerias público-privadas intensifiquem a construção de habitação a custos controlados (conforme debatido no Artigo 5), a pressão especulativa diminuirá. Se esta medida for demasiado rápida e abrangente, a correção de preços em alguns segmentos pode ser mais acentuada, afetando especialmente os promotores que trabalham no segmento médio ou alto, com maior alavancagem.

6. Estratégias de Mitigação e Medidas de Resiliência

Aqui, listamos algumas abordagens para lidar com os riscos descritos — desde as políticas macroprudenciais à renegociação de crédito —, que procuram proteger, ao mesmo tempo, o setor bancário e o imobiliário.

6.1. Políticas Macroprudenciais

  1. Limites de LTV e DSTI
  • O BdP já introduziu limites recomendados; podem ser reforçados se o ESRB ou o BCE detetarem sinais de sobreaquecimento.
  1. Buffers de Capital Contracíclicos
  • Exigir maior capacidade de absorção de perdas nos bancos em períodos de expansão, libertando-a em fases de crise.

6.2. Refinanciamento e Reestruturação de Dívida

  • Alongamento de Prazos ou carências de capital em momentos de stress podem reduzir o pico de incumprimentos e suavizar uma correção de preços.
  • Parcerias entre Bancos e Promotores para reestruturar projetos em vez de optar pela execução (que pode forçar vendas a preços depreciados).

6.3. Supervisão e Coordenação

  • Banco de Portugal e BCE: Monitorização contínua de indicadores de risco (rácios de esforço, preços de mercado, volume de transações).
  • Coordenação com Políticas de Habitação: Integrar a expansão de habitação acessível num planeamento de longo prazo, evitando desequilíbrios súbitos.

7. Perspetivas para o Setor Imobiliário Português

Por último, vale a pena olhar para as dinâmicas específicas do mercado português — as medidas governamentais recentes, o comportamento dos preços, o número de transações e as previsões para 2025, onde se antevê a continuação da descida das taxas de juro.

7.1. Medidas Governamentais e Dinâmica Recente

  • Isenção de IMT e IS para Jovens até 35 anos: A redução de custos de aquisição impulsiona a procura num segmento que, de outro modo, teria maior dificuldade em aceder à habitação;
  • Garantia Pública até 15% do Valor de Compra: A diminuição da necessidade de capitais próprios facilita a entrada de jovens no mercado, mas transfere o risco de incumprimento (no limite dos 15%) para os contribuintes;
  • Resultados do INE: Segundo dados recentes (INE), os preços da habitação subiram 9,8% no 3.º trimestre face ao período homólogo. O número de transações volta a crescer desde o final do 1.º trimestre de 2024, motivado por ligeira descida de juros e pelas novas medidas de incentivo a jovens compradores.

7.2. Dados do INE: Preço vs. Número de Transações

  • O novo relatório do INE realça que os preços continuam a subir de forma expressiva, indicando que a escassez de oferta e a procura — sobretudo interna — ainda alimentam a valorização dos imóveis;
  • É necessário, contudo, distinguir a evolução dos preços da evolução do número de transações: por vezes, o valor médio das transações pode subir, mesmo que o ritmo ou o volume total de negócios desacelere.

7.3. Possível Desfasamento Temporal

  • O impacto da subida das taxas de juro nem sempre se reflete imediatamente nos preços, podendo existir um desfasamento entre as condições de financiamento (que se tornam mais onerosas) e a correção efetiva de preços.
  • Este desfasamento pode ocorrer porque muitos compromissos de compra (por exemplo, promessas de compra e venda) foram assumidos antes dos aumentos mais recentes das taxas de juro, ou porque há segmentos de procura menos sensíveis ao custo do crédito (p. ex., investidores estrangeiros).

7.4. Segmentação do Mercado

  • Em Portugal, certas localizações (Lisboa, Porto, Algarve) e determinados segmentos (habitação de luxo, imóveis para investimento) apresentam dinâmicas de preço diferentes das zonas de menor pressão.
  • É possível que haja, simultaneamente, aumento do valor médio em zonas prime e uma estagnação ou ligeiro decréscimo de transações em áreas onde o poder de compra é mais afetado pelas taxas de juro.

7.5. Conclusão e Prudência

  • Embora as últimas estatísticas do INE indiquem um crescimento robusto de preços, isto não invalida a possibilidade de um abrandamento futuro, sobretudo se a subida das taxas de juro se mantiver ou intensificar, reduzindo a capacidade de endividamento das famílias e a atratividade para certos perfis de investidores.
  • Para os profissionais do setor imobiliário, continua a ser fundamental monitorizar tanto o volume de transações como o valor unitário das mesmas, bem como a evolução das condições de crédito. Caso ocorra uma correção de preços, é provável que esta se manifeste de forma mais gradual ou setorial, em vez de acontecer de forma homogénea em todo o mercado.

7.6. Previsão de Baixa de Taxa de Juro em 2025

  • As previsões do BCE apontam para uma descida das taxas de juro em 2025, o que poderá prolongar o atual ciclo de valorização se a oferta não aumentar significativamente.
  • Este cenário reforça a importância de manter políticas macroprudenciais sólidas e de equacionar o efeito da habitação acessível, para evitar riscos de crédito excessivo e minimizar possíveis futuras correções.

8. Conclusão

Para quem opera no setor imobiliário, a relação entre desvalorização dos imóveis e sistema bancário é crítica para entender a disponibilidade e as condições de financiamento. Embora os dados recentes do INE apontem para uma continuação do ciclo de valorização (com subidas de preço e ligeiro aumento das transações), diversas variáveis — como taxas de juro, investimento estrangeiro, criação de habitação acessível e conjuntura económica — podem inverter ou atenuar esta trajetória.

  1. Riscos
  • Um cenário de correção mais abrupta (superior a 20%) colocaria em causa a solvência de muitas famílias e promotores, gerando aumentos de NPLs nos bancos e maior restrição de crédito.
  • A transferência de risco para o Estado (garantia de 15% em caso de incumprimento) pode onerar os contribuintes se ocorrer uma vaga de incumprimentos.
  1. Oportunidades
  • Uma correção moderada (-5% a -10%) pode tornar o mercado mais acessível sem comprometer seriamente o balanço dos bancos.
  • As medidas de incentivo aos jovens podem dinamizar a renovação da base de compradores, embora haja o risco de inflacionar ainda mais os preços num ambiente de pouca oferta.
  1. Recomendações ao Setor Imobiliário
  • Planear Cenários Adversos: Considerar a possibilidade de oscilações abruptas de preços ou de subida adicional de taxas de juro.
  • Acompanhar Relatórios Oficiais: Dados do BdP, INE, ESRB, EBA e BCE; avaliar a evolução real do número de transações, do valor médio e das condições de financiamento.
  • Equilíbrio Oferta-Procura: O aumento planeado de habitação acessível (Artigo 5) deve ser acompanhado de perto para avaliar o impacto na procura de imóveis de segmento médio-alto.

 

No próximo e último artigo da série, vamos abordar cenários futuros e estratégias de mitigação num horizonte mais amplo, analisando como a adoção de tecnologias (blockchain, tokenização), critérios ESG e um planeamento urbano inteligente podem ajudar a consolidar um mercado imobiliário e financeiro mais robusto e sustentável.

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